Angicos (RN) – Ano de 1936.
DEPOIMENTO DO EX-GOVERNADOR ALUIZIO
ALVES SOBRE O ACIDENTE QUE PROVOCOU A MORTE DE DR. PEDRO MATOS
O Capitão Inácio Vale governou
Angicos (RN), duas vezes: a primeira vez, não lembro bem; a segunda, após o ano
de 1930, bem mais velho, porém sempre enérgico. Lá em Angicos havia ladrão de
bode, ladrão de gado e ele, sempre que prendia os ladrões e depois os soltavas,
raspava-lhe a cabeça. Era um negócio meio ingênuo, talvez, mas o que é certo é
que ele deixou esta tradição. Anos depois, em 1936, ele voltou a ser delegado
de Angicos. Mais velho e calmo, mas sempre muito enérgico e atento aos seus
deveres. Numa certa manhã, estávamos na casa do Prefeito Baltazar Pereira (que
é hoje a casa onde mora Francisco Torres, devidamente reformada e melhorada),
na praça principal, e íamos assistir em Afonso Bezerra ao enterro do velho José
Clementino, o chefe do Partido Popular naquele distrito. Saímos de automóvel,
Baltazar Pereira, Pedro Matos (era deputado estadual e advogado, e fora a
Angicos para atender a um mister profissional), eu e o Capitão Inácio Vale. Eu
era estudante, deveria ter uns quinze anos e ia fazer o discurso no enterro do
correligionário. Quando chegamos ao rio, o carro se quebrou e então nós
voltamos a pé. Era pertinho. Voltamos a pé para a casa de Baltazar, enquanto o
mecânico foi chamado e consertava o carro para nós prosseguirmos a viagem. O
enterro estava previsto para as 11:00h., mais ou menos. Na casa de Baltazar,
Pedro Matos, se sentou numa cadeira de balanço; em frente a ele, o Capitão
Inácio Vale; eu, em pé, ao lado da cadeira de Pedro Matos, com o braço sobre o
espaldar da cadeira, e Baltazar Pereira numa outra cadeira. Começou uma
conversa sobre armas. Pedro Matos tinha mania por armas. Ele comprava, vendia e
trocava revólveres. Há pessoas que gostam. Eu, por exemplo, não gosto. Nunca
usei uma arma, mas há pessoas que têm mania por armas. Então Pedro Matos disse
ao Capitão que tinha um revólver muito bom, mas estava querendo trocar por uma
pistola. O Capitão Inácio Vale disse: “Se quiser, eu posso fazer esse negócio
com o senhor”. E puxou a pistola e mostrou a Pedro Matos. Pedro Matos tirou as
balas da pistola e ficou com elas na mão. E começou a disparar em seco. E
depois fazia pontaria e disparava. “Depois ele devolveu a pistola ao Capitão
Inácio Vale, dizendo: Olhe, esta pistola está com defeito, não centraliza bem”.
Eu não sei bem o que queria dizer ’não centraliza bem’. Recolocou as balas na
pistola, mas nós não vimos. Foi tão rápida a conversa! Todo mundo ali
conversando. Quando ele disse “não centraliza bem”, devolveu a pistola, e o
Capitão Inácio Vale então falou: “Não, não tem defeito nenhum. É assim mesmo”,
Aí pensou em disparar como Pedro Matos estava disparando, julgando que ele
tinha ficado com as balas. Quando disparou, atingiu-o no estômago.
Baltazar tinha chegado e estava
fazendo muito calor. Enquanto não viajava, tinha vestido o paletó do pijama
(ele gostava de estar em casa de paletó de pijama). Então pensou que tivesse
sido nele porque, na mesma hora, correu um vento qualquer e o paletó do pijama
se movimentou. Mas, em seguida, Pedro Matos abriu a camisa e nós vimos aquele
pontinho vermelho ao lado do umbigo e ele disse ao Capitão: “Matou-me. Estou
morto”. O Capitão assombrou-se. Tinha sido um negócio inteiramente casual.
Ajoelhou-se aos pés dele chorando e dizendo: “Doutor Pedro Matos, foi por acaso.
Doutor Pedro Matos, eu não queria. Eu pensei que as balas não estivessem na
pistola”. Aí eu me encarreguei de afastar o Capitão Inácio Vale. Baltazar s
encarregou de levar Pedro Matos para a cama e tomar as providências: manou
chamar um médico. Em Angicos, não existia médico. Mandou buscar em Açu:
Dix-huit ou Dr. Ezequiel ou Pedro Amorim, e eu mandei chamar o Dr. Pereira da
Silva, um médico preto, pernambucano, que morreu muitos anos depois num
desastre de trem e que estava em Lages. Ele atendia em Angicos e Lages. Mandei
chama-lo pela estrada de ferro. Pedro Matos ficou lá, deitado, e eu fui deixar
o Capitão Inácio Vale em casa. A pé, saí com ele pela calçada. Ele morava numa
outra rua, na rua do cemitério. Ele estava muito abalado e chorando muito.
Então, deixei-o em casa e voltei para as providências em relação ao ferido, Pedro
Matos. Começaram a chegar os médicos. Chamamos a mulher dele, dona Inês Matos,
que morava em Natal. Ela veio à tarde, com o médico Luís Antonio e Dr. José
Tavares. Os outros médicos já estavam lá, atendendo-o. Às duas da tarde, o Pe.
Manoel Tavares, depois Bispo de Caicó, fez um bilhete, um cartão a Pedro Matos,
que era Grão-mestre da Maçonaria. Eu me lembro até dos termos desse bilhete.
Dizia: “Doutor, quando sentir necessidade de Deus, lembre-se dos Sacramentos da
igreja. Vigário”. E eu o entreguei a Pedro Matos. Ele pediu para eu ler e
disse:
- Você acha que eu vou morrer?
- Não, não posso dizer que você vai
morrer, mas, se você quer realmente se reconciliar com a religião, eu acho que
você deve fazê-lo, independemente disto.
- É prefiro morrer com Deus.
Então fui chamar o Pe. Tavares, que
realizou algo muito solene. Eu nunca tinha visto até esta idade. Foi para a
igreja paramentou-se, mandou chamar os coroinhas e fez uma espécie de procissão
com o Santíssimo levando a hóstia na ambula coberta e tocando a campainha até
lá. Ao chegar, aconteceu outro fato curioso. O Pe. Tavares queria um depoimento
de Pedro Matos, em cartório, quer dizer, perante o tabelião, abjurando a
Maçonaria sem o que não poderia dar-lhe o sacramento. Pedro Matos vacilou um
pouco, mas terminou dizendo que abjurava. Então mandou chamar Vanderlinde
Germano, que era o tabelião. Vanderlinde veio e Pedro Matos declarou que
abjurava a Maçonaria para ter direito a receber os Sacramentos da igreja
perante aquelas pessoas. Quando terminou o documento, o Padre resolveu
confessar Pedro Matos, mas este já estava com hemorragia interna e não
aguentava as mãos abertas. Eu e Chico Trindade tentávamos manter os dedos do
doente abertos. O Padre, então, me fez fazer um juramento de que eu me manteria
cego diante do que visse e surdo diante do que ouvisse. Era um juramento até
bonito. E ali fez a confissão. Evidentemente, eu não prestei atenção. O Padre
depois ministrou os Sacramentos ao doente e voltou para a igreja acompanhado
por uma pequena multidão. E ele ficou. Às seis horas da tarde, chegaram sua
mulher, Dr. Luís Antonio, Dr. José Tavares e o filho dele, Iram, um rapazinho.
Foram examiná-lo, eu os chamei e perguntei qual era o estado dele. O Dr. José
Tavares cruzou os braços e disse:
- Nada a fazer. Só esperar a morte.
Houve hemorragia interna e não há mais nada o que se fazer.
Então eu resolvi tentar trazer Pedro
Matos num trem especial. Ele era líder do governo. Mas não conseguimos. O trem
só chegou de madrugada e ele morreu às dez horas da noite.
Pedro Matos queria fazer uma
declaração isentando o Capitão Inácio Vale de qualquer culpa, pois tinha sido
inteiramente casual. Quando o tabelião chegou, ele fez a declaração.
Depois que ele morreu, eu resolvi ir à casa
do Capitão Inácio Vale comunicar a ele a morte. Ele estava muito deprimido,
chorando muito. Mandava me buscar, queria sair a todo o momento para ir à casa
de Baltazar. A família não deixava. Dona Liliosa e Jair, sua filha mais nova,
não o deixavam sair. Com muito jeito, comuniquei a ele que Pedro Matos tinha
morrido, mas lhe comuniquei também a declaração feita em cartório. Que ele
podia procurar depois. Ele queria a todo o custo sair de Angicos, E eu disse: Não,
acho que o senhor não deve sair. O inquérito tem que ser feito por outro. Mas o
senhor não tem porque sair. Todo mundo reconhece que o senhor não teve culpa.
Procurei consolá-lo.
De madrugada, chegou o trem e nós
partimos para o enterro. Depois de alguns anos, eu o visitei em Natal, se não
me engano, na rua Amaro Barreto, onde ele morava. Não me lembro muito bem. Eu
sei que fui visita-lo. Achei-o muito velho, fisicamente decadente. São essas as
lembranças que tenho do Capitão Inácio Vale; e essa é importante, pois é a
primeira vez que o problema da morte de Pedro Matos é colocada, e as versões
que eu ouvi na época eram contraditórias, mas a verdadeira história é essa que
eu lhe contei.
Natal (RN), 22 de novembro
de 1984.
Aluízio Alves
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Do livro: “O SERIDÓ NA MEMÓRIA DO SEU POVO”, de
autoria do Prof. Adauto Guerra Filho. Editado pelo Departamento Estadual de
Imprensa do RN – Natal, 2001.
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