A LUTA CONTINUA!

biraviegas@bol.com.br

segunda-feira, 4 de março de 2013

O CAUSO DO DIA

- O “CABEÇA CHATA” –
Severino Bezerra
 
          Nada mais difícil do que julgar.Quem ouve as razões dos dois lados, vacila sem dar sentença. Porque ou dá razão às duas partes ou não a dá a nenhuma.
          A vesguice do regionalismo no Brasil criou o hábito de dar sentenças antes de atendidas às razões das partes. Frequentemente ouvimos um nortista dizer que o paulista é isso ou aquilo e vice-versa. Mas paulistas, nortistas, gaúchos ou mineiros, quando se conhecem, mudam logo de parecer. Percebem o falso dos julgamentos coletivos. Somos, de norte a sul, terrivelmente irmãos, nas qualidades e nos defeitos. E a norte, a sul, a leste e oeste existe a mesma quantidade de gente boa e de gente má.
          Depois do fracasso da revolução de 1932, quando São Paulo foi invadido pelas tropas federais, a exasperação contra os nortistas chegou ao apogeu. O “cabeça chata!” Com que gosto os paulistas estigmatizavam esses irmãos nordestinos que o governo federal fardara e lançara contra nós! A expressão “cabeça chata” dizia tudo, principalmente na boca de algumas mulheres, sempre tão hábeis na destilação dos venenos verbais.
          Lembro-me dum caso melancolicamente triste ao qual denominarei: “O Caso da Dama Paulista e do Cabeça Chata”. Coisa vulgar. Simples incidente de rua, mas caso em que o orgulho teve de baixar os olhos para esconder uma lágrima.
          Eu havia tomado um ônibus na praça da Sé e sentara-me no banco fronteiro ao ocupado por duas senhoras – a “Dama Paulista” e outra. O veículo seguiu.
          Na primeira parada entrou um homem moreno, anguloso, recurvo – o tipo clássico do nordestino. Veio sentar-se ao meu lado.
          A presença daquele homem no mesmo ônibus que ela tomara irritou terrivelmente a orgulhosa “Dama Paulista”, e ei-la a desabafar-se nos termos mais cruéis.
          - “Nem conheço mais a minha terra”, começou a fizer à meia voz para a companheira.
          - “A gente põe o pé na rua e vê essas “coisas” que o norte manda para cá, para estragar a cidade. Deus que te marcou, alguma coisa em ti achou. O achatamento da cabeça é marca de ruindade” – e foi aí além, a rosnar as impertinências mais ofensivas.
          Aquilo incomodou-me. Se o homem perdesse a paciência e revidasse, tínhamos escândalo e dos piores. Olhei para ele, certo de vê-lo rubro de cólera e em ponto de explosão. Enganei-me. Sua expressão era de calma absoluta, embora um tanto dolorosa. Tinha a cabeça baixa, como quem está absorvido em cismas.
 
            E a dama a dar-lhe:
           - “Andam morrendo de fome por ai, e quando caem aqui ficam como os donos da casa. Ah, eu é que queria ser governo, para expulsar todos! É “Cabeça Chata”, então, rua! Isto aqui é nosso. Não pode estar sendo estragado com a presença dessas lacraias.”.
          Era demais. Se o nortista não se ofendia, eu me ofendi por ele.
           Embora paulista, a atitude daquela dama estufada de orgulho me envergonhava – e, mais do que isso, me exasperava. Deliberei intervir, chama-la à ordem. E voltando-me, bruscamente, comecei:
          - Minha senhora, permita-me que lhe diga que,
          Mas não fui além. O “Cabeça Chata” me deteve, pondo a mão no meu ombro.
           - Não! Não a irrite ainda mais. Ela seria capaz de arrancar-me o olho que me resta...
         Só então notei o defeito.
          - Cego dum olho?
           - Sim perdi a vista direita num dos combates do Túnel, quando me batia por São Paulo.
          Fiquei com os olhos parados por alguns segundos. Depois voltei-me para a dama orgulhosa, que estivera atenta ao diálogo. Estava muda, de cabeça pendida, procurando qualquer coisa na bolsa entreaberta. O revólver para matar o “Cabeça Chata”? Não; o lencinho para enxugar uma lágrima.
<<<<<     >>>>>

Do livro: “PARA ERRAR MENOS” de autoria do Professor Severino Bezerra. Editado pelo Departamento Estadual de Imprensa do RN / Governo Walfredo Gurgel – Natal (RN), 1965.

Nenhum comentário: