- O “CABEÇA CHATA” –
Severino Bezerra
Nada mais difícil do que julgar.Quem
ouve as razões dos dois lados, vacila sem dar sentença. Porque ou dá razão às
duas partes ou não a dá a nenhuma.
A vesguice do regionalismo no Brasil
criou o hábito de dar sentenças antes de atendidas às razões das partes.
Frequentemente ouvimos um nortista dizer que o paulista é isso ou aquilo e
vice-versa. Mas paulistas, nortistas, gaúchos ou mineiros, quando se conhecem,
mudam logo de parecer. Percebem o falso dos julgamentos coletivos. Somos, de
norte a sul, terrivelmente irmãos, nas qualidades e nos defeitos. E a norte, a
sul, a leste e oeste existe a mesma quantidade de gente boa e de gente má.
Depois do fracasso da revolução de
1932, quando São Paulo foi invadido pelas tropas federais, a exasperação contra
os nortistas chegou ao apogeu. O “cabeça
chata!” Com que gosto os paulistas estigmatizavam esses irmãos nordestinos
que o governo federal fardara e lançara contra nós! A expressão “cabeça chata” dizia tudo,
principalmente na boca de algumas mulheres, sempre tão hábeis na destilação dos
venenos verbais.
Lembro-me dum caso melancolicamente
triste ao qual denominarei: “O Caso da
Dama Paulista e do Cabeça Chata”. Coisa vulgar. Simples incidente de rua,
mas caso em que o orgulho teve de baixar os olhos para esconder uma lágrima.
Eu havia tomado um ônibus na praça da
Sé e sentara-me no banco fronteiro ao ocupado por duas senhoras – a “Dama Paulista” e outra. O veículo
seguiu.
Na primeira parada entrou um homem moreno,
anguloso, recurvo – o tipo clássico do nordestino. Veio sentar-se ao meu lado.
A presença daquele homem no mesmo
ônibus que ela tomara irritou terrivelmente a orgulhosa “Dama Paulista”, e ei-la a desabafar-se nos termos mais cruéis.
- “Nem conheço mais a minha terra”,
começou a fizer à meia voz para a companheira.
- “A gente põe o pé na rua e vê essas
“coisas” que o norte manda para cá, para estragar a cidade. Deus que te marcou,
alguma coisa em ti achou. O achatamento da cabeça é marca de ruindade” – e foi
aí além, a rosnar as impertinências mais ofensivas.
Aquilo incomodou-me. Se o homem
perdesse a paciência e revidasse, tínhamos escândalo e dos piores. Olhei para
ele, certo de vê-lo rubro de cólera e em ponto de explosão. Enganei-me. Sua
expressão era de calma absoluta, embora um tanto dolorosa. Tinha a cabeça
baixa, como quem está absorvido em cismas.
E a dama a dar-lhe:
- “Andam morrendo de fome por ai, e
quando caem aqui ficam como os donos da casa. Ah, eu é que queria ser governo,
para expulsar todos! É “Cabeça Chata”,
então, rua! Isto aqui é nosso. Não pode estar sendo estragado com a presença
dessas lacraias.”.
Era demais. Se o nortista não se
ofendia, eu me ofendi por ele.
Embora paulista, a atitude daquela
dama estufada de orgulho me envergonhava – e, mais do que isso, me exasperava.
Deliberei intervir, chama-la à ordem. E voltando-me, bruscamente, comecei:
- Minha senhora, permita-me que lhe
diga que,
Mas não fui além. O “Cabeça Chata” me deteve, pondo a mão no
meu ombro.
- Não! Não a irrite ainda mais. Ela
seria capaz de arrancar-me o olho que me resta...
Só então notei o defeito.
- Cego dum olho?
- Sim perdi a vista direita num dos
combates do Túnel, quando me batia por São Paulo.
Fiquei com os olhos parados por
alguns segundos. Depois voltei-me para a dama orgulhosa, que estivera atenta ao
diálogo. Estava muda, de cabeça pendida, procurando qualquer coisa na bolsa
entreaberta. O revólver para matar o “Cabeça
Chata”? Não; o lencinho para enxugar uma lágrima.
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Do livro: “PARA
ERRAR MENOS” de autoria do Professor Severino Bezerra. Editado
pelo Departamento Estadual de Imprensa do RN / Governo Walfredo Gurgel – Natal
(RN), 1965.
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