O MESTRE
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Walter Medeiros* –
A história do Rio Grande do Norte estaria
incompleta se não fosse dada a verdadeira importância do Movimento Estudantil,
que foi resgatado a duras penas por dedicados militantes que colocaram a luta
contra a ditadura militar acima de qualquer outro interesse. Mas entre esses
militantes existe uma pessoa cuja participação precisa ser bem situada,
explicada e entendida. Trata-se de Juliano Siqueira, que já havia passado pelos
porões da repressão e retomava sua vida estudantil como estudante de Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, a partir da inauguração do
campus.
Juliano
foi a maior referência da resistência, tanto pela sua experiência e preparo,
como pela liderança nata que levou a estudantada a reunir-se em torno das lutas
que eram identificadas como necessárias e indispensáveis. Era um tempo em que a
sala de aula da nossa turma – tive o privilégio de ser seu colega de curso –
reunia nada menos que oito agentes da Polícia Federal e outros órgãos de
segurança. Tempo em que todos desconfiavam de praticamente todos. A relação de
confiança para participação nas atividades políticas era algo construído com o
máximo de cautela, mas era impossível não correr certos riscos.
Nesse
cenário iam sendo retomadas as atividades da política estudantil, das quais
lembro bem a primeira, a eleição do representante dos estudantes de Direito no
colegiado do curso. Disputa acirrada entre um civil, no caso eu mesmo, e um
estudante de Direito capitão da Polícia Militar, Domício Damásio. Ganhamos a
eleição com uma grande margem, o que nos deixava com um sentimento
indescritível: um misto de vitória e vibração, com receio do que poderia advir
naquele novo cenário. Depois nossos colegas democratas e socialistas foram
sendo eleitos para os diretórios acadêmicos e finalmente para o Diretório
Central de Estudantes - DCE, cuja eleição, a exemplo do que ocorria na política
geral, era indireta: cinco presidentes de diretórios elegiam o Presidente do
DCE.
Em
1976, na eleição para o DCE o candidato dos democratas e das chamadas esquerdas
era o estudante de Direito Jair Elói de Souza. Mas havia uma informação de que
poderia ter seu nome vetado pela Assessoria de Segurança e Informação – ASI,
por conta da sua atuação política. Havia a impressão de que o meu nome seria
menos visado, daí a decisão de registrarmos a minha candidatura a Presidente do
DCE. Caso a candidatura de Jair não fosse vetada, eu retiraria a minha. E foi o
que aconteceu. Depois de confirmada a candidatura, retirei a minha e aquele
colega foi eleito Presidente do DCE, entidade que tinha sede no prédio do IFRN
da Avenida Rio Branco.
Cada
fato político de importância nacional era comentado e discutido pelas
lideranças estudantis universitárias, que diariamente planejavam suas
atividades nos mais diversos locais, sempre driblando aqueles agentes dos
órgãos de segurança que podiam até saber parte dos nossos roteiros, porém eram
seguramente despistados. Mas chegavam a desenvolver ações mais diretas na
tentativa de inibir o movimento.
Em
dado momento houve uma manifestação de estudantes em São Paulo, com cerca de
cem participantes. Era uma grande multidão para a época onde três pessoas
conversando já preocupavam à repressão. O fato foi noticiado por mim através da
Rádio Cabugi, onde trabalhava como redator. Poucos minutos depois o diretor da
Rádio, José Gobat foi chamado a dar explicações na Polícia Federal, que
funcionava perto da sua residência, em Tirol. Ia ser noticiado na Tribuna do
Norte, através de matéria de Edilson Braga, mas a PF tomou conhecimento e
Agnelo Alves foi chamado para receber a informação de que a matéria estava
censurada.
Nos
dias seguintes os estudantes de Natal elaboraram e divulgaram uma nota de apoio
ao movimento de São Paulo, numa reunião de cerca de sessenta pessoas realizada
no Campus. Como resultado, todos foram chamados a depor para dar explicações na
ASI ou na Polícia Federal. Naquele tempo a agenda dos colegas era complicada.
François Silvestre também fazia parte da nossa turma de Direito e havia sido
preso pela PF. Em dado momento invadiram e fizeram uma busca na casa de Juliano
Siqueira, situada na rua Jundiaí. Lembro de quando nos reencontramos com ele e
ele relatou sobre coisas que levaram, inclusive alguns poemas de sua lavra. Não
sei se os resgatou.
Minha
namorada à época (hoje minha mulher), Graça foi chamada à ASI e sofreu pressões
para afastar-se de mim e dos demais participantes do Movimento Estudantil. Fui
caçado em casa e na rua, até que me pegaram na redação da Tribuna do Norte e
fui levado a depor na Polícia Federal, onde compareci por três dias. Ali
fizeram acareação minha com François, para tentar criar contradições em nossos
depoimentos. Quando cheguei à PF e fui levado à presença do superintendente
Hugo Pôvoa, o professor Varela Barca estava tratando da liberação de um curso
de Russo para um dentista que necessitava de literatura naquele idioma. Varela
Barca afirmou que a partir daquele momento estava ali como meu advogado. Mas o
policial garantiu não ser necessário que permanecesse. Também meu irmão
Wellington Medeiros, chegando de viagem a São Paulo foi até a PF tomar pé da
situação. Estava terminando meu depoimento e fui liberado, saindo com ele.
Em
1977, para concluir o curso, candidatei-me a orador da solenidade geral de
colação de grau. Apresentei o discurso a ser proferido e fui chamado pelo
professor Paulo Soares, que sugeriu retirar o discurso para que não fosse
vetado. Disse-lhe que não desistiria e que se tivessem de vetar, que o
vetassem. Assim ocorreu. O discurso foi vetado e o orador da solenidade naquele
ano foi um sargento do Exército. Paralelamente eu havia sido escolhido orador
da turma de Direito. Resultado: o mesmo discurso vetado eu li na Aula da
Saudade, que ainda tenho na memória. O professor Américo de Oliveira Costa fez
referência ao meu discurso considerando-me um “idealista”.
Os
fatos importantes daquela época passavam pela discussão do grupo, que reunia
estudantes de todos os centros, bem como agregados das lutas democráticas e,
pela clareza com que conseguia interpretar e orientar as ações, a maioria
tratava, merecidamente, Juliano como o Mestre. O local era determinado pelas
circunstâncias: uma sala de aula, um cinema, um bar, o cineclube. Juliano
conseguia transmitir um imenso amor à causa do povo, uma fé na força popular,
uma esperança num futuro livre daquelas aflições, uma certeza em meio a um
imenso mar de dúvidas. A lembrança de escrever esse relato tem, portanto, como
objetivo, deixar esse registro da homenagem ao amigo lutador, a quem os
potiguares e brasileiros devem parte do que conquistaram a partir dos avanços
democráticos das décadas seguintes aos anos 70.
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* Jornalista (waltermedeiros@supercabo.com.br)
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