O COPO DE CRISTAL
Durante
algum tempo, em sua residência, o Dr. Vécio Barreto de Paiva assustava-se,
arrepiava-se até, sentindo a presença do Dr. Eutiquiano Garcia Reis, como se o
colega já falecido lhe desejasse falar, confidenciar alguma coisa que em vida
não pudera fazer.
Conhecidos
desde os bancos escolares, companheiros de juventude e contemporâneos da
Faculdade de Direito do Recife, o longo convívio os uniu numa amizade que
parecia inabalável, não obstante de temperamentos completamente opostos. O Dr.
Véscio, extrovertido, aberto, sempre estava disponível para uma conversa. O Dr.
Eutiquiano era introvertido, fechado, distante. Embora frequentasse o Natal
Clube, onde encontrava-se com os amigos, Eutiquiano preferia a tranquilidade de
sua vida de solterio, de sua casa na avenida Floriano Peixoto, solitário,
jogando paciência ou ouvindo música clássica, acompanhado do seu copo de
whisky, que sorvia pausadamente. Íntegro, as suas sentenças de juiz eram
conhecidas pela rigorosa imparcialidade. Mas uma pequena desatenção de
Eutaquiano, produto mais de sua introversão, da sua maneira às vezes brusca de
agir do que desejo voluntário de ferir, esfriou uma amizade que parecia
permanente. E o Dr. Véscio limitou o seu relacionamento a um cumprimento formal,
quando, eventualmente, se encontravam.
Esse
seu modo, às vezes ríspido, é confirmado por um episódio ocorrido no Natal
Clube: sentado à uma mesa, Eutiquiano chama o garçom e lhe entrega um copo de
cristal, acompanhado de um pedido, que era mais uma ordem:
-
Quando eu vou lhe pedir água, não traga nesses copos pesados, grosseiros, que
servem a todo mundo. Traga-a neste, que vai ficar aqui, só para mim.
Passados
alguns dias, faz sinal ao mesmo garçom, pedindo água. Distraído, recebe o copo.
Quando percebe que não era o seu copo de cristal, que mandara reservar,
irrita-se e joga-o no chão, com violência.
No
entanto, o Dr. Eutiquiano lamentava a amizade interrompida entre si e Véscio,
julgando-se culpado e ansioso por reatá-la. Mas, algum tempo depois do
incidente que os afastou, adoeceu gravemente, falecendo na Casa de Saúde São
Lucas, sem haver tido a oportunidade de se desculpar, de reatar os velhos laços
rompidos, levando para o outro lado da vida o sentimento de haver magoado o
amigo a quem tanto prezava. O Dr. Véscio ainda pensou em lhe fazer uma visita,
porém desistiu, temendo que a sua presença pudesse emocioná-lo, agravando o seu
estado de saúde.
A
sensação da presença do amigo recentemente falecido lhe trouxe à lembrança o
incidente que os separou. Com certeza, desejava desculpar-se, como falara a
alguns amigos. Numa noite, ainda cedo, despreocupado, tomando a sua habitual
cerveja bem gelada, o Dr. Véscio sente, inesperadamente, a repetição do
estranho fenômeno. Falando alto, seguindo orientação de pessoa da família,
dirige-se ao colega como se o estivesse vendo:
-
EutIquiano, lembre-se que você não é
mais deste mundo. Aquilo que se passou entre nós e o deixou preocupado
não tem a menor importância. Não o visitei quando você estava doente, porque
você poderia ter se emocionado. Está tudo bem. Vou rezar para você
No
final, mantendo os nervos sob controle, Véscio faz um pedido:
-
Eutiquiano, para eu ter certeza que realmente é você, dê um sinal de sua
presença.
Incontinenti,
num movimento brusco, a mesa é virada com violência, derrubando copo e garrafa.
Assustado, olhando os cacos de vidro no chão molhado de cerveja, o Dr. Véscio
lembrou-se de Eutiquiano no Natal Clube, zangado com o garçom que esquecera de
lhe trazer a água em seu copo de cristal.
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Do livro "HISTÓRIAS QUE NÃO ESTÃO NA
HISTÓRIA" de autoria do professor JOSÉ DE ANCHIETA FERREIRA.
Editado pela RN Gráfica e Editora Ltda. Natal (RN), 1989
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