DELEGADO DA POLÍCIA FEDERAL SUBMETEU LULA A UM INTERROGATÓRIO CLÁSSICO
Jornalista Josias de Souza
Oficialmente, o delegado Josélio Azevedo de Sousa, da Polícia Federal, ouviu Lula como testemunha. Na prática, submeteu-o a um interrogatório de investigado clássico. Intimado, Lula compareceu perante a autoridade policial na última quarta-feira (16). Deu-se na sede da PF, em Brasília. O depoimento foi divulgado nesta sexta-feira. Ocupa nove páginas. O conteúdo revela um personagem em apuros. Crivado de interrogações sobre o escândalo da Petrobras, Lula manteve a fábula do “eu não sabia”. Mas suas contradições denunciam a dificuldade de manter o velho enredo.
No pedido que enviou ao STF para interrogar Lula, o delegado Josélio anotara que, “na condição de mandatário máximo do país” na época do assalto à Petrobras, Lula “pode ter sido beneficiado pelo esquema, obtendo vantagens para si, para seu partido, o PT, ou mesmo para seu governo, com a manutenção de uma base de apoio partidário sustentada à custa de negócios ilícitos na referida estatal.” Por isso queria ouvi-lo. E caprichou nas perguntas.
O doutor quis
saber de que matéria-prima é feita a coligação partidária que dá
suporte aos governos do PT. Lula tentou distrair o delegado com um conto
da carochinha. Disse que o apoio que sua gestão recebeu foi “baseado na
afinidade dos partidos com o programa de governo elaborado nas duas
campanhas” presidenciais que venceu.
Antes que a inquirição
virasse comédia, o delegado puxou Lula de volta para o drama que o
assedia. E o interrogado foi ajustando o lero-lero à realidade. Afirmou
que, “numa política de coalizões, presume-se que haja a distribuição de
ministérios e cargos importantes do governo para os partidos políticos
que compõem a base de apoio.”
O delegado injetou na conversa o
nome de Renato Duque, ex-diretor de Serviços da Petrobras, preso no
Paraná sob acusação recolher propinas na estatal em nome do PT. Lula não
se deu por achado. Disse não ter nada a ver com a nomeação de Duque. E
acomodou a encrenca no colo do grão-petista José Dirceu, também preso
por ordem do juiz paranaense Sérgio Moro.
Segundo Lula, o nome de
Duque foi submetido ao crivo da Casa Civil da Presidência, então
chefiada por Dirceu. Nessa época, Lula chamava Dirceu de “capitão do
time” de ministros. “Cabia à Casa Civil receber as indicações
partidárias e escolher a pessoa que seria nomeada”, disse o morubixaba
do PT ao delegado.
O doutor Josélio perguntou se Duque era o homem
do PT na diretoria da Petrobras. Lula disse não saber “se foi o PT ou
outro partido” que o indicou. Realçou que não conhecia Duque. E quanto a
Nestor Cerveró, outro ex-diretor da Petrobras preso? No caso de Cerveró
a memória de Lula fez questão de prestar-lhe socorro: “Foi uma
indicação política do PMDB.”
Lula repetiu que não participou do
processo de escolha dos diretores da Petrobras. Espremido, afirmou que a
escolha dos nomes passava pela costura de acordos políticos.
Acrescentou que os acordos “eram feitos normalmente pelo ministro da
área, pelo coordenador político do governo e pelo partido interessado na
nomeação.”
A Petrobras pende do organograma do Ministério de
Minas e energia. A ministra “da área” era Dilma Rousseff. Mas Lula se
absteve de mencionar-lhe o nome. O delegado perguntou quem era o
coordenador político do governo. Lula respondeu que teve vários
coordenadores ao longo dos seus dois mandatos. Empilhou quatro nomes:
Tarso Genro, Jaques Wagner, Alexandre Padiha e Aldo Rebelo. Alegou não
se lembrar qual deles tratou das nomeações de Renato Duque e de Nestor
Cerveró.
De tanto o delegado escarafunchar, Lula acabou caindo em
algo muito parecido com uma contradição. Reconheceu que a palavra final
sobre as nomeações era dele. Depois de ter jogado a responsabilidade
sobre os ombros de Dirceu, o interrogado explicou que os partidos
negociavam suas nomeações com diversos atores —os ministros da área, o
coordenador político…— “não somente com o ministro-chefe da Casa Civil.”
Foi
nesse ponto do depoimento que Lula acabou premiando a insistência do
delegado com o reconhecimento de que, “ao final do processo”, o
fisiologismo desaguava no gabinete presidencial. Ouvido, Lula
“concordava ou não com o nome apresentado”. Para não ficar mal no
inquérito, Lula apressou-se em dizer que baseou suas escolhas em
“critérios técnicos que credenciavam o indicado”. Deu no petrolão.
Vários
delatores da Lava Jato disseram que Lula negociou diretamente com José
Janene, então líder do PP na Câmara, a permanência do corrupto confesso
Paulo Roberto Costa na diretoria de Abastecimento da Petrobras. Mas Lula
disse ao delegado Josélio que “nunca tratou com qualquer liderança de
qualquer partido sobre a indicação de algum nome para cargo na
administração pública.” Hã, hã.
A certa altura, o delegado voltou a
um tema que abordara no início da inquirição. Afinal, quais diretores
da Petrobras foram indicados pelo PT? E Lula escorregou. Depois de dizer
que não sabia que partido havia pendurado Renato Duque na diretoria da
estatal petroleira, Lula afirmou que o personagem “talvez tenha sido uma
indicação do PT.”
Lula responsabilizou-se pessoalmente, de resto,
pela nomeação de dois personagens que passaram pela presidência da
Petrobras: os petistas José Sérgio Gabrielli e José Eduardo Dutra. O
segundo já morreu. Mas Gabrielli continua na alça de mira da
força-tarefa da Lava Jato.
O delegado inquiriu Lula também sobre
João Vaccari Neto, o ex-tesoureiro do PT preso no Paraná e já condenado
em sentença de Sérgio Moro, o juiz da Lava Jato. Lula disse que sua
relação com Vaccari no partido “foi pequena, já que, em 1996, deixou a
presidência do PT.” Quando virou presidente da Repúlica, aí mesmo é que
“passou a ter menos contato”. Lorota.
Em 2003, no alvorecer do
primeiro reinado de Lula, Vaccari presidia o Sindicato dos Bancários de
São Paulo e exercia a atribuição de secretário de Finanças da CUT, o
braço sindical do PT. Na fase de composição do governo, o petismo quis
fazer de Vaccari presidente da Caixa Econômica Federal. Dois obstáculos
barraram as pretensões de Vaccari: o nariz torcido de Antonio Palocci,
então ministro da Fazenda, e a falta de diploma universitário. Os
estatutos da Caixa exigem que o presidente tenha passagem pelos bancos
de uma universidade. E Vaccari não preenchia esse quesito.
Para
não deixar o companheiro ao relento, Lula abrigou-o no Conselho de
Administração de Itaipu Binacional. Então ministra de Minas e Energia,
de cujo organograma pende a estatal, Dilma opôs resistência. E Vaccari
foi alçado a uma das sinecuras mais cobiçadas da República. A posição de
conselheiro de Itaipu lhe exigia pouco trabalho (uma reunião a cada
dois meses) e rendia remuneração mensal na casa dos R$ 20 mil. Vaccari
só deixou o posto depois que a Lava Jato o pendurou de ponta-cabeça nas
manchetes.
Numa fase em que amigos podem se converter em
delatores, Lula cuidou de afagar Vaccari no depoimento ao delegado
Josélio. Lembrou que “ele assumiu a tesouraria do partido em 2010”. E
disse que “soube pela direção do partido que ele fez um excelente
trabalho à frente da Tesouraria do PT.” Mais: “Todos os membros da
direção do partido, inclusive seu presidente, Rui Falcão, declararam a
qualidade do trabalho desempenhado por Vaccari no comando da tesouraria
do PT.” A Lava Jato demonstra que, sob Vaccari, a tesouraria do PT, tão
elogiada por Lula, contém o anabolizante das propinas extraídas da
Petrobras.
O delegado perguntou a Lula a que atribui a condenação
de Vaccari na Lava Jato. O interrogado atribuiu o infortúnio às delações
premiadas. E disse confiar numa reversão da sentença em instâncias
superiores do Judiciário. Lula disse não acreditar que Vaccari tenha
obtido “vantagens indevidas a partir de contratos celebrados pela
Petrobras”. Por quê? “Ele é conhecedor da legislação.” Então tá!
Incômodo
como maquininha de dentista, o delegado conduziu o interrogatório para
José Carlos Bumlai, o pecuarista que tinha passe livre no Planalto e
terminou na cadeia. Lula disse que o conheceu na campanha presidencial
de 2002. Reconheceu que mantém com o suspeito uma “relação de amizade''.
Chegou mesmo a hospedá-lo “algumas vezes” na Granja do Torto, em
Brasília —com o meu, o seu, o nosso dinheiro. Mas disse jamais ter
tratado com Bumlai de assuntos relacionados com “dinheiro ou valores.”
Bumlai
é acusado de corrupção. Pegou empréstimo de R$ 12 milhões no Banco
Schahin. Em depoimento, disse ter repassado a verba ao PT. O
financiamento jamais foi pago. Em troca do perdão da dívida, Bumlai
intermediou um contratado do Grupo Schahin com a Petrobras. Coisa de R$
1,6 bilhão. Lula, naturalmente, não sabia.
A alturas tantas, o
delegado perguntou a Lula por que pessoas que integraram o seu governo
são alvejadas por inquéritos que tramitam no STF. Lula atribuiu o
fenômeno a três fatores: “o processo de transparência e aprimoramento
dos órgãos de fiscalização e controle, […] ocorrido ao longo dos últimos oze anos; b) à imprensa livre; e c) a um processo de criminalização
do PT. Hummm…
Lula não disse, mas a criminalização do PT é obra do
próprio PT. Revolucionário, o partido descobriu uma fórmula inédita de
combate à corrupção. O PT escancara os roubos cometendo-os. Por sorte,
algo de diferente sucede no Brasil: ex-presidente da República
interrogado assim, como uma testemunha suspeita, é coisa nunca antes
vista na história desse país.
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