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terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A CRÔNICA DO DIA

- O FOGO DO OUTRO MUNDO -
         José Iveraldo Dias Guimarães

Manoel da Luz era o pescador mais pescador de todos os pescadores daquela praia. Para começar, sabia quase todos os segredos do mar. Havia até quem dissesse que ele sabia todos. Eu  acredito, pois acertava sempre quando o mar estava com preguiça a ponto de não soltar os peixes para ninguém. Sabia quando a lua estava bem humorada e faria a vida no mar fervilhar. Sabia até, antecipadamente, quando os ventos iam cismar de ter lundum, de fazer greve para não soprar as velas das jangadas. Medo? Medo mesmo das invencionices do mar ele me confessou que nunca teve. E saibam, muita coisa do reino dos mistérios azuis dá um medo danado de grande. Acreditem. Eu mesmo, certa vez, pescando camarões no Golfo do México, vi o dia ficar de noite em pleno meio-dia. Não era nenhum eclipse e não tinha uma nuvem sequer flanando pelo céu. E mais, anoiteceu sem aparecer um pedaçinho qualquer de estrelas! Realmente foi amedrontador. Não fiquem aí pensando que estou contando uma estória de pescador...
Mas, voltando a Manoel da Luz. Já era pertinho da meia-noite quando ele ajeitou o tamborete para ficar mais próximo da rede, onde eu pastorava a chegada do sono. Com uma voz cavernosa e um ar de ansiedade, fez-me uma confidência que certamente seria a confidência mais difícil de fazer. Içou-a lá de dentro da alma como se puxasse um cordame relutante de um poço sem fim.
- A única coisa de que tenho medo nesta vida é daquele cemitério de muros sem serventia, confessou, apontando para os muros brancos do cemitério da praia que cercavam a negritude da noite no cimo da duna.
- Sem serventia por que? perguntei curioso.
Revelou-me então (o que eu já ouvira tantas vezes antes) considerar os muros inúteis, porque quem estava dentro não podia sair e quem estava fora não queria entrar. Mas, ponderou de repente e disse que talvez, em algumas ocasiões, eles até impedissem o incêndio do mundo. Desta vez quem ficou supreso fui eu.
- Como assim?, indaguei.
- Tem noites, disse, que os mortos saem das tumbas na forma de fogo e ficam dançando no meio das cruzes. Se eles saíssem dali, poderiam tocar fogo em tudo.
Aproximou-se mais ainda de mim e quase sussurrando segredou:
- Tem gente aqui nesta praia acreditando que aqueles fogos são boitatás, cobras-de-fogo, e o cemitério, o seu lugar de encontro. Mas eu sei que não é nada disso não. Os fogos são os mortos, concluiu ele.
Olhei para o rosto amorenado de Manoel da Luz e senti que ele havia contado sua história com toda convicção. Percebí, no momento, a enorme dificuldade que teria de convencê-lo da verdadeira razão dos fogos do cemitério, seu único medo.
Com muito tato, disse ao experiente pescador que aquele fogo era conhecido como fogo-fátuo, por sua natureza passageira, e onde existisse uma concentração de matéria orgânica em decomposição, como nos cemitérios ou nos manguezais e pântanos, aquele fenômeno poderia acontecer. A chama fugaz sobre os túmulos seria produzida pela emanação de um gás inflamável chamado fossina (hidrogênio fosforado), originado nos corpos em decomposição resultante da reação daquela matéria orgânica com o oxigênio do ar.
Manoel da Luz estava impassível. Ele soltou o olhar por cima da murada do alpendre, observando a escuridão que empacotava o marulho das ondas. Levantou-se e, alegando o adiantado da hora, disse já ser hora de ir.
Encolhi-me mais e mais no ventre da rede. Parece-me ter ainda ouvido um resmungo de Manoel da Luz:
- Fossina? Pois sim...
*****  X  *****

* José Iveraldo Dias Guimarães é bíólogo marinho (especialista em carnicicultura), consultor ambiental e escritor. Foi um dos técnicos responsáveis pela implantação  do Projeto Camarão (projeto de criação de camarões em cativeiro, idealizado pelo ex-governador do RN, Cortez Pereira),  diretor da fazenda camaroneira do Grupo Akzo, em Macau-RN e diretor do Departamento de Biologia da Universidade Potiguar.
Crônica retirada do seu livro: Os Veleiros do Infinito - Crônicas do Planeta Azul - Editora Lidador Ltda / 1999.

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