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segunda-feira, 24 de março de 2014

CRÔNICA

- IMAGENS DA SEMANA SANTA -
Umberto Peregrino

As procissões do Encontro e de Nosso Senhor Morto todos os anos enchiam de compungidas emoções a minha piedosa cidade.
Todos vinham para as ruas acompanhar comovidamente as representações religiosas.
A procissão do Encontro tinha tudo de uma verdadeira representação do episódio da vida de Cristo. Pessoas das mais representativas da cidade armavam, por conta própria, à porta das suas respectivas residências, os chamados Passos. Eram altares onde a procissão se deteria, como se deteve Jesus nos diversos pontos da Via Sacra.
Esses Passos eram armados com caprichos extraordinários, pois se estabelecia estimulantes rivalidade entre os seus patrocinadores. Famílias havia, porém, que cada ano obtinham o privilégio de armar um dos Passos para a procissão do Encontro. E cada vez mais se esmeravam, pondo no preparo do altar as melhores rendas e as melhores sedas da casa.
Mas o momento culminante da procissão era a cena do Encontro. A procissão de Nossa Senhora vinha por uma rua e a de Nosso Senhor dos Passos vinha por outra. A imagem de Nossa Senhora trazia à mão um lenço de mão chorosa, à procura do filho. Jesus apresentava-se numa figura sofredora, recurvada ao peso da cruz. E quando as duas imagens se defrontavam, a uma aproximação lenta e ansiosa, um grande orador sacro da cidade assomava ao púlpito, armado na rua, e articulava um patético sermão alusivo ao Encontro.
Quantos choravam nessa hora solene, tocados pelo verbo do orador.
Mais pungente ainda, no seu impressionante realismo, era, todavia, a procissão de Nosso Senhor Morto ou do Enterro, como muitos chamavam. De fato, aquilo parecia verdadeiramente um solene enterro.
A imagem de Jesus morto, em tamanho natural, era conduzida sobre o pálio. Bem recordo aquele corpo nu de cujas cicatrizes parecia ainda merejar sangue; a cabeça pendente e o rosto pálido completavam a impressão de um cadáver.
Na frente, puxando a procissão, um respeitável senhor de opa sacudia, sem pausa, uma matraca. A banda de música da Polícia Militar entoava marchas fúnebres. A multidão compacta, quase toda a população da cidade, vinha atrás, a passos medidos, em muita ordem e muito silêncio. Guardavam todas uma sincera atitude de respeito e de tristeza. Muitas vezes deu-me vontade de chorar ao longo daquele cortejo fúnebre. Sentia como se fosse ali um morto meu, uma pessoa muita querida e a quem muito se fizera sofrer.
A cidade inteira devia experimentar sentimentos semelhantes, porque a sexta-feira da Paixão, na minha cidade, era um dia pesado, um dia de mágoas gerais, de abatimento unânime. Nesse dia todos procuravam ser bons, todos se perdoavam, as crianças não faziam artes, os adultos não castigavam as crianças, não se mentia, não se odiava, não se falava mal do próximo, não se consentiam pensamentos impuros...
A natureza humana ficava suspensa... Mas com que ansiedade todos esperavam o Sábado de Aleluia que lhes restituiria os seus instintos e sentimentos do ano inteiro...

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Do livro: 'CRÔNICA DE UMA CIDADE CHAMADA NATAL', de autoria do escritor UMBERTO PEREGRINO. Publicado pela Editora Clima (Coleção Edições Clima - vol. 69). Natal (RN), em junho de 1989.

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