- ZÉ AREIA,* O ÚLTIMO BOÊMIO -
José Alexandre Garcia
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Zé Areia vendia rifa de um carneiro à porta da Delícia (famosa confeitaria que existiu nos anos 40, em Natal - RN), quando um filho do alfaiate Benvenuto começa a mexer com ele, botando mil e um defeitos no animal.
E Areia, calado.
O rapaz, pressupondo que tinha chocado o vendedor, prosseguiu:
- Zé, este carneiro tem jeito de fresco! Como é o nome dele?
E o ex-barbeiro, em cima da bucha, sem levantar a cabeça, passando trôco para um comprador.
- Benvenuto!
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Em tarde ensolarada, o nosso cambista chupava um picolé na calçada da Delícia, quando passa um conhecido e faz ares de reprovação.
- Zé, você chupando em via pública!
E Zé, tirando o picolé da boca:
- Melhor do que você que chupa em via urinária!
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Tomando cerveja numa mesa, Alexandre, o compositor Donzinho e o cambista, quando entra na Confeitaria uma dona, tipo Marta Rocha, pra lá de boa.
Romântico, Alexandre falou::
- Essa mulher é um poema. Estou com o coração batendo fora do compasso.
Donzinho, mais terra a terra, sensual e concupiscente, revelou:
Eu estou é de p... duro.
E Areia traindo sua tendência para a felação:
- E eu estou com a língua trêmula!
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Nas horas de folga, Zé aparecia no escritório para conversar com o velho Zé Alexandre sobre passarinhos e recordar os tempos de Natal nos anos 20. Li todos os jornais, até o Órgâo Oficial. E cochilava, invariavelmente.
Nas horas de folga, Zé aparecia no escritório para conversar com o velho Zé Alexandre sobre passarinhos e recordar os tempos de Natal nos anos 20. Li todos os jornais, até o Órgâo Oficial. E cochilava, invariavelmente.
Esava com o Órgão Oficial, cai não cai da mão quando um terceiro lhe previne:
- Zé, o órgão está de cabeça pra baixo.
E ele, sem tirar a vista do jornal:
- E mole!
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Uma tarde, em fase melancólica, contava a sua desdita.
Fora casado, tivera lar, esposa e filhos. Mas a mulher ou não aguentara a sua vida boêmia e as incertezas dos dias sem ter o que comer, qual Amélia, ou nascera com o destino da lua - como naqueles versos de Lupicínio - não ia viver só pra um. Pra resumir a história, ao retornar uma madrugada, não encontra nem mulher, nem filhos, nem móveis, nada.
Zé Areia confessava que ficara como louco.
- Não, por ela. Pelos meninos - esclarecia.
Pergunta daqui, pergunda dali, termina por localizar a nova morada da sua ex-esposa. Agora tida e mantida por um tal coronel Teodósio, chefe político respeitável e pai de numerosos filhos.
Impando de alegria, Zé Areia larga-se para rever os meninos.
Estava brincando com eles, quando salta dum cavalo o tal coronel Teodósio, rebenque na mão e falando grosso:
- Boa tarde, "seu" Areia!
- Boa tarde, "seu" Areia!
- Ai eu... e passa nos peitos uma talagada de cachaça, dessas de sargento.
Os companheiros da mesa esperavam, calados e respeitosos, a narrativa do violento bate-boca ou cena de feroz pugilato.
- Aí eu... prosseguiu Zé, - voltando do seu natural galhofeiro - desengalhei o chapéu da minha galhada de chifres e respondí muito educadamente: 'Boa tarde, coronel Teodósio, Deus guarde Vossa Senhoria e suas respectivas famílias'.
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Numa sexta-feira, dia da Procissão dos Passos, Areia esperava que a imagem subisse a ladeira para molhar a garganta.
A família Amorim Garcia durante 90 anos armou o primeiro passo da Via Sacra, inicialmente na rua Dr. Barata, no velho casarão de meu avô, Coronel Odilon e depois na residência de meu tio Odilon, agente do Loide Brasileiro, na rua Duque de Caxias.
Quando a imagem parou frente ao altar para as cerimônias litúrgicas de praxe, cutuquei o cambista.
- Zé, vai pedir o que, ao Santo?
E ele, em cima da bucha, salvo erro ou omissão da memória de fato decorrido há algumas décadas:
'O meu Bom Jesus
Espero de Tí, Justiça!
Transforme minha cruz
Toda ela em cortiça!'
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Retirados do livro 'ACONTECÊNCIAS E TIPOS DA CONFEITARIA DELÍCIA', de autoria de José Alexandre Garcia - Editora Clima (3ª Edição) - Natal - 1989.
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