- A VELHA DA LAGOA DO AFONSO -
Eduardo
Barbosa (*)
Lampião costumava escrever, por onde passava
as seguintes palavras, que expressavam bem o sentimento religioso que nunca o
abandonou: “Vancês deve se alembrá di Jesus, di Maria, di José o do meu padrinho,
padre Ciso”.
Foi em um dos seus dias de maior
religiosidade, que o Rei do Cangaço encontrou
a velha Donana. Donana vivia da caridade pública e passava, frequentemente,
tremendas privações, quando o destino colocou-a diante de Lampião.
- Me dá uma esmolinha, seu moço?...
- Qui
tá passando cum voismicê, minha véia? Tá sofrendo privação?
- Oí seu moço, o sinhô num pode carculá u
qui eu tô passando. Só mesmo a grande fé qui eu tenho em Jesus, Maria e José, e
também no milagroso padre Cirso, é qui mi fáis ainda vive pru esses mundo di
Cristo Nosso Sinhô...
Lampião estava conquistado, A velha falara
na Sagrada Família e no seu querido padrinho. Portanto o Rei do Cangaço estava na obrigação de, de acordo com os seus
sentimentos religiosos, auxiliar a anciã em tudo o que ela necessitasse.
- Minha
véia, voismicê sabe cuzinhá, pro mode de fazê o dicumê de argumas pessoas?...
- Cuzinhá eu sei, seu moço, mais num tenho
mais força pro mode de soprá os lume...
- Voismicê
sabe lavá rôpa?...
- Lavá eu sei inté muito bem, mais cadê
força pru mode di isfregá ela?
- E
tumá conta de criança, voismicê sabe?...
- Óia que eu inté tenho muita paciença prá
oiá as criança, mais, si as criança corrê, cumo é qui eu faço, pro mode de í atráis
delas?...
Lampião coçou a cabeça; passou a mão na
sua barba rala, tossiu e prometeu:
- Minha
véia, eu vou pensa in arguma coisa pra voismicê. Agora, aceite esse dinheirinho
pro mode di i passando inté eu lhe percurá...
- Sim sinhô... E?... Se o senhor num si
incomodá, cumo é u seu nome, moço?...
- Eu
me chamo Lampião.
E com essas palavras, o Rei do Cangaço retirou-se. Dias depois,
perto de Lagoa do Afonso aparecia uma espécie de tendinha com o pomposo título
pintado em letras rústicas: “Birosca da
Dona”. Por baixo, em letras menores, lia-se: “Vancês deve se alembrá di
Jesus, di Maria, di José o do meu padrinho, padre Ciso”.
Desde esse dia, Donana, a proprietária da
birosca presenteada por Lampião, não passou mais privação. Mandou fazer
diversas saias azuis e vermelhas e há até quem afirme que, remoçada por aquela
vida mais folgada, a velha chegou a arranjar amores e aventuras pitorescas. Toda
a vez que Lampião passava pela Bahia, visitava sua protegida na Lagoa do
Afonso, e ficava satisfeito em ver que a velhinha estava progredindo.
O Rei
do Cangaço vivia, então, um dos momentos mais agitados de sua vida
aventureira. Perseguido sem tréguas e abalado pela morte de dois de seus
irmãos, vingava-se a torto e a direito, sacrificando muitas vidas em sua fúria
sanguinária.
Em Sergipe, Alagoas, na Bahia e por quase
todo o Nordeste, o Rei do Cangaço era
considerado o lobisomem de duas personalidades. O homem e a fera. Se o homem
não raro praticava o bem, a fera exterminava sem piedade. E como ambos, homem e
fera, habitavam o mesmo corpo, precisavam sacrificar o homem para que a fera
sucumbisse. Então, a cabeça do herói foi dada a prêmio.
Numa das visitas de Lampião à birosca de
Donana, Patori, um cangaceiro que costumava acompanhar-lhe naquelas visitas,
viu um sertanejo afastando-se furtivamente, depois de trocar algumas palavras
em voz baixa com a velha. Patori chamou a atenção do Rei do Cangaço que, fingindo nada ver, entrou e sentou-se em uma das
mesas e pediu aguardente e um prato de comida.
(*) Do Livro: “LAMPIÃO – Rei do Cangaço”, de
autoria de Eduardo Barbosa – Editora Tecnoprint S.A. – Rio de Janeiro (RJ)
1985.
- Donana,
– disse depois de servido – o qui é qui
tava fazendo aquele “macaco” aqui?...
- Qui “macaco”
Lampião? – falou a velha, meio desonfiada.
- Aquele
que saiu daqui quando eu cheguei – retrucou Lampião. – Voismicê num anda
pensando má a meu respeito, anda, Donana?
- Deus que me perdoe, Capitão, se eu pensei, arguma vêiz in lhi fazé má...
- Intonce
beba um poco de cachaça cumigo, pro mode de nóis continua bons amigos...
E sem esperar resposta da velha, Lampião
encheu uma caneca de aguardente e ofereceu à velha,
- Não, Capitão,
eu num gosto de pinga, num sinhô... Flou, apavorada, a velha Donana.
- Cumu
é qui não gosta, se voismicê tem bibido sempre cumigo, todas vez qui eu venho
pur aqui?...
- Mas é qui agora eu tô duente, Capitão...
- Apois
voismicê vai curá as doenças qui tem, bebendo agorinha mermo essa cachaça. Ô
intão vai morrê mesmo é na ponta do meu punhá...
E, num gesto brusco, Lampião arrancou o
punhal da bainha e espetou na madeira engordurada da mesa. Donana ajoelhou-se
implorando pela vida ao Rei do Cangaço.
Mas Lampião, agarrando-a pelos cabelos obrigou-a a beber todo o conteúdo da
caneca. A velha deu um grito pavoroso e caiu, estrebuchando.
- Perdão Lampião – gritava nos estertores
da morte. – Eu invenenei a cachaça pro mode de lhe mata... Mas num tinha raiva
de voismicê não... Eu só quiria o dinheiro do prêmio, pro mode de fica rica...
Eu... Ai!...
- Vambora
Paturi... Deixemo essa véia disgraçada pros “macaco” incontrá ela... Eles vão
logo sabe qui mais um ingrato pagô o qui divia ao diabo... Vambora logo...
O Rei
do Cangaço partiu. Seu coração sofria mais porque, fazendo o bem, sempre
encontrava quem não o merecia.
Atrás, ficava o exemplo de Donana.
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