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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

RIO GRANDE DO NORTE DE ANTIGAMENTE: NA CONFEITARIA DELÍCIA (*)

- HERNANI HUGO, O DELEGADO -

Pelas dezenove horas, Hernani Hugo apontava na Confeitaria, vindo do edifício Maria Auxiliadora, com seu passo sem pressa de quem está fazendo o footing. Recém-banhado, bem escanhoado, cabelos pretos estirados, lustrosos de brilhantina, vasto bigode à moda lusitana em rosto bem moreno, as unhas manicuradas. Um conjunto branco, imaculadamente limpo.
Seu todo inspirava cordialidade, confiança e educadas maneiras. Nem parecia, mas era o delegado de Ordem Social.

SINA

- Vou cumprir minha sina – queixava-se. A noite parece que adula os sentimentos mesquinhos. Muitas vezes penso que minha repartição é a cloaca das paixões humanas da cidade, tanta sordidez vejo, presencio e escuto.
E num arremate:
- Deixei de acreditar nas criaturas, depois que assumi esse cargo.
Eu invocava Fernando Pessoa no  “Livro do Desassossego”:  “ A alma humana é um manicômio de caricaturas”.
Ele concordava, balançando a cabeça gravemente.

RELEMBRANDO 1964

Ainda hoje, os funcionários da Polícia Civil lembram-se dele e à unanimidade, reconhecem:
- Foi o melhor Delegado que Natal já teve.
Bastaria destacar sua atuação em 64. Quando houve gente neste burgo que relacionou inimigos e desafetos e, com requintada perversidade, os denunciou como comunistas chapados.
A sorte era que o QG, de tão assoberbado, baixava as denúncias para Ulisses Cavalcanti e Hernani informarem. E muita gente boa livrou-se de sérios dissabores e de ver o sol nascer quadrado, graças a essa dupla que agia com o coração, dando os devidos descontos, contornando os exageros, pingando os pontos nos II, ante a exaltada emocionalidade de pseudos Catões.

O MAIOR VERMELHO

Teve até passagem engraçada. Quando uma dessas vestais empenhou-se particularmente em dedurar inimigo.
- Ele é comuna todo, doutor. Vermelho da cabeça aos pés. O maior vermelho da cidade.
Ao que Hugo contestou de imediato, invocando passionalidade esportiva que talvez nem fosse genuína.
- Alto lá! Este galardão eu não cedo a ninguém. O maior vermelho de Natal sou eu, que sou americano fanático.

O CASO OLÍVIO

Hernani aparecia na Delícia distribuindo boas-noites.
- Vem prender alguém delegado? – perguntavam – Se é, está na hora. Olívio está impossível. Roubando descaradamente nos preços.
Hernani tirava de letra:
- O caso Olívio não é da minha alçada. Em sendo portuga, é com a Interpol.

DOUTORES

Uma noite a casa estava an grand complet. Entre muitos, povoavam a calçada Paulo Pires, João Meira Lima, Alexandre, Maranhão, Mozart Silva. Em pé, encostado ao balcão, como sempre Zé de Rubens.
Hernani chegou e saudou:
- Boa noite doutores!
O Moleque Saci, peruando o grupo para godelar uma cerveja, fez-se de falso modesto.
- Menos eu, doutor... Eu sou um pobre diabo.
O delegado sabedor de certas artimanhas que o negro perpetrava na portaria do Teatro e que seu diretor era doido para flagrar rebateu na hora:
- Você é mais do que doutor. Um homem que engana Meira Pires Dodô santo dia, é mais do que doutor de borla e capelo. É PHD, de fato e de direito.

A AUTORIDADE

Uma tarde, quando Hugo chegou à delegacia encontrou-a em polvorosa. Agentes haviam detido autor de arruaças em pensão alegre e o dito cujo insurgiu-se em altas vozes e entonação ameaçadora, ao que ele denominava cerceamento de seus direitos.
- Eu sou uma autoridade – repetia a cada instante – Não posso ser preso.
Ouvindo-o, a princípio em tom cordato e compreensivo, Hernani foi enchendo o saco e se enfezando com a arrogância do bagunceiro, a quem detectou, desde a primeira hora, uma vigarice a flor da pele.
- Mas afinal – perguntou – que autoridade é o senhor?
- E declinou pela primeira vez, seus títulos: Bacharel, advogado, promotor, delegado, oficial do Exército, expedicionário, cruz de guerra, medalha por ato de bravura em campo de batalha.

ALFABETO INTEIRO

A autoridade com A maísculo murchou na cadeira. E reconheceu.
- O Sr. é autoridade no alfabeto inteiro, doutor!
Hernani  mandou-lhe soltá-lo. Pela resposta.

CONFUSÃO DE BIGODES

Doutra feita, num bar vizinho a Olívio um marinheiro mexicano abria o maior azar.
Era mês, cadeira, garrafa, copo, toalhas, talheres pra todos os lados, ninguém continha o homem.
Recorreram a Hernani Hugo que ia passando.
Quando o marujo o avistou, teve a visão de seu compatriota e cantor de tantos boleros que o faziam roer pelos portos do  mundo: Bievenido Granda. E do slogan que o celebrava.
- És ló bigode que canta? Perguntou, numa esperança.
E Hernani, sem meias palavras, indo direto ao assunto.
- Não. É o bigode que prende!

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(Delícia *)
A Confeitaria Delícia era um estabelecimento algo boêmio dos anos 40, no bairro nobre da Ribeira, para onde convergiam empresários, altos comerciantes, jornalistas, intelectuais, artistas e boêmios, bem como, integrantes e habitues do aperitivo o dia todo ou das alegres cervejadas no fim da tarde.


Do livro: ACONTECÊNCIAS E TIPOS DA CONFEITARIA DELÍCIA de autoria de José Alexandre Garcia – Impresso pela CLIMA Artes Gráficas e Publicidade Ltda - Natal (RN)  3ª Edição/1989.

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