- HERNANI HUGO, O DELEGADO -
Pelas dezenove horas, Hernani
Hugo apontava na Confeitaria, vindo do edifício Maria
Auxiliadora, com seu passo sem pressa de quem está fazendo o footing. Recém-banhado, bem
escanhoado, cabelos pretos estirados, lustrosos de brilhantina, vasto bigode à
moda lusitana em rosto bem moreno, as unhas manicuradas. Um conjunto branco,
imaculadamente limpo.
Seu todo inspirava cordialidade,
confiança e educadas maneiras. Nem parecia, mas era o delegado de Ordem Social.
SINA
- Vou cumprir minha sina – queixava-se. A noite parece que adula os
sentimentos mesquinhos. Muitas vezes penso que minha repartição é a cloaca das
paixões humanas da cidade, tanta sordidez vejo, presencio e escuto.
E num arremate:
- Deixei de acreditar nas
criaturas, depois que assumi esse cargo.
Eu invocava Fernando Pessoa
no “Livro do Desassossego”: “ A alma humana é um manicômio de
caricaturas”.
Ele concordava, balançando a
cabeça gravemente.
RELEMBRANDO 1964
Ainda hoje, os funcionários da
Polícia Civil lembram-se dele e à unanimidade, reconhecem:
- Foi o melhor Delegado que Natal
já teve.
Bastaria destacar sua atuação em
64. Quando houve gente neste burgo que relacionou inimigos e desafetos e, com
requintada perversidade, os denunciou como comunistas chapados.
A sorte era que o QG, de tão
assoberbado, baixava as denúncias para Ulisses Cavalcanti e Hernani informarem.
E muita gente boa livrou-se de sérios dissabores e de ver o sol nascer
quadrado, graças a essa dupla que agia com o coração, dando os devidos
descontos, contornando os exageros, pingando os pontos nos II, ante a exaltada
emocionalidade de pseudos Catões.
O MAIOR VERMELHO
Teve até passagem engraçada.
Quando uma dessas vestais empenhou-se particularmente em dedurar inimigo.
- Ele é comuna todo, doutor.
Vermelho da cabeça aos pés. O maior vermelho da cidade.
Ao que Hugo contestou de
imediato, invocando passionalidade esportiva que talvez nem fosse genuína.
- Alto lá! Este galardão eu não
cedo a ninguém. O maior vermelho de Natal sou eu, que sou americano fanático.
O CASO OLÍVIO
Hernani aparecia na Delícia
distribuindo boas-noites.
- Vem prender alguém delegado? –
perguntavam – Se é, está na hora. Olívio está impossível. Roubando
descaradamente nos preços.
Hernani tirava de letra:
- O caso Olívio não é da minha
alçada. Em sendo portuga, é com a Interpol.
DOUTORES
Uma noite a casa estava an grand complet. Entre muitos,
povoavam a calçada Paulo Pires, João Meira Lima, Alexandre, Maranhão, Mozart
Silva. Em pé, encostado ao balcão, como sempre Zé de Rubens.
Hernani chegou e saudou:
- Boa noite doutores!
O Moleque Saci, peruando o grupo
para godelar uma cerveja, fez-se de falso modesto.
- Menos eu, doutor... Eu sou um
pobre diabo.
O delegado sabedor de certas
artimanhas que o negro perpetrava na portaria do Teatro e que seu diretor era
doido para flagrar rebateu na hora:
- Você é mais do que doutor. Um
homem que engana Meira Pires Dodô santo dia, é mais do que doutor de borla e
capelo. É PHD, de fato e de direito.
A AUTORIDADE
Uma tarde, quando Hugo chegou à
delegacia encontrou-a em polvorosa. Agentes haviam detido autor de arruaças em
pensão alegre e o dito cujo insurgiu-se em altas vozes e entonação ameaçadora,
ao que ele denominava cerceamento de seus direitos.
- Eu sou uma autoridade – repetia
a cada instante – Não posso ser preso.
Ouvindo-o, a princípio em tom
cordato e compreensivo, Hernani foi enchendo o saco e se enfezando com a
arrogância do bagunceiro, a quem detectou, desde a primeira hora, uma vigarice
a flor da pele.
- Mas afinal – perguntou – que
autoridade é o senhor?
- E declinou pela primeira vez,
seus títulos: Bacharel, advogado, promotor, delegado, oficial do Exército,
expedicionário, cruz de guerra, medalha por ato de bravura em campo de batalha.
ALFABETO INTEIRO
A autoridade com A maísculo
murchou na cadeira. E reconheceu.
- O Sr. é autoridade no alfabeto
inteiro, doutor!
Hernani mandou-lhe soltá-lo. Pela resposta.
CONFUSÃO DE BIGODES
Doutra feita, num bar vizinho a
Olívio um marinheiro mexicano abria o maior azar.
Era mês, cadeira, garrafa, copo,
toalhas, talheres pra todos os lados, ninguém continha o homem.
Recorreram a Hernani Hugo que ia
passando.
Quando o marujo o avistou, teve a
visão de seu compatriota e cantor de tantos boleros que o faziam roer pelos
portos do mundo: Bievenido Granda. E do
slogan que o celebrava.
- És ló bigode que canta?
Perguntou, numa esperança.
E Hernani, sem meias palavras,
indo direto ao assunto.
- Não. É o bigode que prende!
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(Delícia *)
A Confeitaria Delícia era um estabelecimento algo boêmio dos anos 40,
no bairro nobre da Ribeira, para onde convergiam empresários, altos
comerciantes, jornalistas, intelectuais, artistas e boêmios, bem como,
integrantes e habitues do aperitivo o dia todo ou das alegres cervejadas no fim
da tarde.
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