Helena Chagas
O que dizer de tanto carinho, homenagens, elogios? Seu Carlos Chagas,
o jornalista, lá do céu deve estar dizendo: uai, gente, não precisava
tanto... Modéstia de quem, mineiramente, não gostava de mostrar a
própria grandeza. Mas tenho certeza de que adorou. Principalmente porque
tudo isso fez com que eu, mamãe, Claudia, netos e bisnetos nos
sentíssemos abraçados e confortados. Porque eu tenho certeza de que, até
nessa hora, ele está pensando na gente. E eu acordei de madrugada com o
coração cheio de boas lembranças do meu pai.
Quando eu era bebê, meu pai me enrolava no lençol, como uma
mumiazinha, e me prendia no berço com clipes de papel para eu não me
descobrir à noite – o que, obviamente, não adiantava nada. Ele me levou à
praia aos seis meses de idade, e de lá saiu com um pacote à milanesa
debaixo do braço, deixando menos areia em Copacabana porque eu havia
engolido um bocado. Ele me obrigou, literalmente, a gostar de jujuba. Aí
eu já devia ter mais ou menos um ano e meio, era super geniosa e berrava
enquanto ele colocava as balas na minha boca e eu tentava cuspir. Até
que comecei a sentir o açúcar. Amo jujuba até hoje.
Meu pai foi o ídolo de crianças das mais diversas gerações, das
filhas, afilhados, sobrinhos, filhos dos amigos, amigos das filhas, dos
netos e dos bisnetos. Conversava e brincava como um igual, se
encarapitava no alto das árvores, subia no telhado, levava aqueles
bandos de meninos para praias desertas, ainda no Rio, e ao Zoológico de
Brasília, onde ele deveria ter recebido um título de sócio, de tanto que
ia. O vovô é uma criança velha, definiu um dia o neto Cacá, quando
tinha lá seus sete anos. Ele contava histórias muito bem. Do universo,
do mundo, do Brasil. Às vezes eu chegava na escola e achava que a
professora estava repetindo o que meu pai tinha inventado.
Ele me deu todos os livros que eu pude ler, e os que eu não pude
também. Acho que nunca vi meu pai sem um livro por perto, e ele
cercou-se deles de tal forma que as estantes foram se estendendo pela
casa toda, transbordando da biblioteca para quartos, corredores,
qualquer espaço possível. Como contou minha irmã de coração, Carol
Brígido, em seu lindo texto sobre o padrinho, papai tinha estantes com
filas duplas de livros. Olho em volta, aqui em casa, e, entre pilhas de
livros, vejo que quem sai aos seus não degenera.
Meu pai passou a primeira noite da primeira neta em casa andando com
ela, aos berros, pelo corredor. E ele não ligou a mínima para o fato de,
cronologicamente, a neta ter chegado antes do casamento. Quando, sem
graça, aos dezenove, contei a ele que estava grávida, a reação foi uma
sonora gargalhada de quem tinha desde sempre o sonho de ser avô – e que
avô. Quando finalmente resolvi casar, e estávamos só nós dois em casa,
antes de sair para a igreja já lotada de parentes e amigos, papai virou
para mim e perguntou: “Tem certeza de que você quer mesmo ir? Não tem
nenhum problema desistir. Você fica aqui, eu vou lá na igreja agora e
aviso a todo mundo que você mudou de ideia...”. É claro que casei, e ele
ganhou um genro que acabou por amar como a um filho.
Quando resolvi ser jornalista, tinha muito medo de ser apontada como
“peixinho”, filhinha de papai que não conquistara seu espaço por
merecimento. Então, resolvi que nunca trabalharia com ele, nunca
aceitaria qualquer notícia que ele me passasse ou que obtivesse por
fontes que encontrava na casa dele e nem falaria com ele sobre o meu
trabalho. Ele entrou no meu jogo e, nas conversas em família, não
falávamos de trabalho. Ignorávamos o assunto. Comecei, com certa mágoa –
olha a loucura - a achar que ele não estava nem aí mesmo para meu
destino jornalístico. Até que um dia entrei em seu escritório e achei um
texto meu, publicado no Jornal de Brasília uns dias antes, todo
rabiscado - “copidescado”, como se dizia antigamente - com erros e
palavras mal empregadas sublinhados. Não sei o que ele ia fazer com
aquilo se eu não tivesse achado.
Brigamos e discutimos muitas vezes, em família, por causa de
política. Na minha casa, todo mundo dizia o que queria e professava o
credo que lhe aprouvesse. Geralmente ficávamos eu e Claudia contra ele.
Mamãe, a psicóloga, mediando e botando panos quentes. Mas aprendi com
ele que essas divergências não têm, ao fim e ao cabo, a menor
importância na ordem geral das coisas e da vida. Entendemos - e acho que
não só nós, mas também suas legiões de alunos – a importância do
respeito e da tolerância a posições contrárias.
Aprendi com meu pai a nunca perder um amigo por discordar ou pensar
diferente. Lembro um domingo em que o Zé Aparecido, então governador do
DF e grande amigo dos meus pais, chegou lá em casa esbaforido depois de
ser vaiado por uma manifestação de estudantes. Na qual, quando olhou
bem, reconheceu minha irmã Claudia. Papai achou a maior graça.
Num momento difícil nessa profissão às vezes maldita, às vezes
bendita, resolvi que não ia mais ser jornalista. Estava me sentindo
injustiçada, sofrendo muito, tinha errado na escolha, melhor seria ter
feito Direito e ser advogada, ia parar de trabalhar, largar tudo... Ele
me olhou com aquela cara de quem não estava levando a sério aquelas
bobagens: “Isso é a sua vida...”. Às vezes, meu pai sabia mais de mim do
que eu mesma.
Ontem, minha neta Heloísa, de quatro anos, virou para a mãe e disse
que nunca mais vai desenhar. É o luto dela, que passava horas sentada no
colo do Vovô Carlos (bisavô), na escrivaninha de trabalho dele, os dois
desenhando juntos. Sábado passado foi a última vez.
É claro que a Heloísa vai voltar a desenhar, porque a vida continua. E
essa foi mais uma das lições do Carlos Chagas: boa ou ruim, a vida
continua, temos que resistir e seguir em frente. Tudo tem seu jeito,
dizia ele, porque a única coisa que não tem remédio mesmo é a morte.
Pois é, né, pai...
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